sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

Afiacao diferente

Afiacao, como qualquer atividade artesanal, e' algo personalissimo. Cada um tem seu jeito proprio, originario de diversas informacoes e experimentacoes, sedimentado pelo tempo e a pratica ao ponto de tornar-se automatico. Usualmente, mesmo no comeco seguindo-se a mesma cartilha, ao final sera raro, rarissimo haver sequer semelhanca entre o jeito de um e o jeito de outro. E, como em qualquer atividade humana personalissima, uma vez um praticante tendo consolidado o seu jeito, para ele aquele passa a ser O jeito, todos os outros repletos de defeitos e imperfeicoes...


Ate por isso, raramente se vera qualquer um com nome a zelar se propondo a discutir tecnicas de afiacao. Todo mundo sabe havera muito mais vaias do que aplausos, seja qual for a proposta ou recomendacao. Exemplarmente, Mr. Christopher Schwarz, editor, autor, instigador de tendencias, renomado guru na marcenaria artesanal entre outros atributos, afirmou em seu blog na Popular Woodworking Magazine:
"Eu faco questao de evitar postagens sobre afiacao. E' o que ha de simples, mas se faz confuso por muito bateboca e muitos produtos comerciais.
Honestamente, eu nao dou a minima como voce afia suas ferramentas. Se voce consegue obter uma interseccao com raio zero e entao da polimento a ambas as superficies, entao voce faz parte do clube. (...)"
 O que nao se discute e' que uma boa afiacao deve obter essa interseccao de duas superficies com raio zero (um angulo, sem qualquer arredondamento), idealmente com o menor desgaste possivel de material e no menor tempo possivel, e mantendo a geometria do gume.


Pois por esses dias, dando uma lida em um topico sobre guias de afiacao em um forum dA Matriz, o WoodTalk Forum, deparei com uma postagem sobre um metodo de afiacao que promete ser mais rapido e produzir menos desgaste de material. Fui pesquisar, e achei o tema suficientemente embasado para experimenta-lo, e tao instigante que — mesmo correndo o risco de vaias — resolvi apresenta-lo aqui pensando talvez possa interessar a algum de meus sete fieis leitores...

-- oOo --



Era uma vez um cara chamado Steve Elliot, um marceneiro profissional dA Matriz que trabalha com maquinas industriais em sua marcenaria, e cujo hobby e' futricar com plainas manuais, particularmente as infill inglesas. Essas futricacoes eventualmente o levaram, primeiro, a constatar que o que ja havia de publicado entao sobre desgaste do fio de laminas com o uso, o arredondamento do fio, era praticamente tudo relacionado a ferramentas motorizadas. Dai entao, `a decisao de estudar como seria o padrao do muito menos intenso desgaste que ocorre na plainagem manual.



Encurtando a novela, ele utilizou uma plaina manual em pranchas de cerejeira americana para cortes entre 0,03 a 0,05mm de profundidade. A cada 50 pes lineares plainados, o gume da lamina era levado a um microscopio com aumento de 540X e fotografado. A lamina era entao retornada `a plaina, ajustada para corte na profundidade padrao, mais 50 pes lineares plainados e o processo se repetiu ate completar 800 pes lineares. E entao tudo de novo, com outra lamina, e outra lamina, e... Algumas das fotos sao mostradas ahi `a direita.

(Pensando talvez melhore a clareza, alguns detalhes:
- Um pe linear, ou 30,48 centimetros, pode ser considerado o comprimento de uma passada media com uma plaina para todos os efeitos praticos.
- A cerejeira americana e' madeira nao abrasiva (sem silica), com uma dureza um pouquinho maior do que a do pinho (Araucaria) e um pouquinho menor do que a da macaranduba.
- As imagens mostradas sao de uma plaina com lamina com o bizel para baixo.
- Foram empregados diversos tipos de laminas, com acos de alto carbono, A2, ligas especiais, etc..)




Valores medios das imagens obtidas foram entao integrados em um grafico:


Na pratica, utilizando uma plaina de acabamento (smooth plane) o progressivo arredondamento do gume se tornou significativo, prejudicando a qualidade da plainagem, a partir de 250 pes lineares, ou 250 passadas. Ou seja, a cada 250 passadas — em uma madeira, para nos, de dureza media — uma plaina de acabamento deve ter a lamina reafiada para evitar-se surjam as imperfeicoes que um fio cego propicia.

Na hora de afiar, no entanto, esse grafico do desgaste da lamina apontou um aspecto intrigante.

Clique nas imagens para amplia-las



Se nos propusermos a refazer o gume e a geometria da lamina empregando as tecnicas usuais, ou seja, desgastando apenas o bizel, significaria no grafico desgastarmos o bizel ate alcancarmos a linha 1, onde se ira comecar a perceber o revirar da rebarba (wire edge ou wire line).

Se no entanto — e esse e' o aspecto intrigante — nos dispusermos a fazer a afiacao iniciando por desgastar a parte plana da lamina ate provocar rebarba, ou seja, atingindo a linha 2 superior, e so entao passarmos a desgastar o bizel ate notarmos o surgimento de rebarba, ou seja, atingindo a linha 2 inferior, fica evidente teremos alcancado nosso objetivo — refazer a interseccao com raio zero e mantendo a geometria do gume — com muito menor perda de material e por conseguinte com menor esforco e em menor tempo.







Aplicando os mesmos raciocinios ao caso de 250, ao inves de 800 passadas, ou seja, reafiando a lamina tao logo detetado perda no fio ao inves de esperar por total embotamento, fica ainda mais evidente, comparando na figura `a direita a area que restaria desgastando-se apenas o bizel (linha a) com a area que restaria desgastando primeiro a face plana e entao o bizel (linhas b), que a perda de material e portanto o esforco e o tempo seriam muitissimo menores.


Uma demonstracao pratica da aplicacao dessa abordagem de afiacao, e de sua rapidez e facilidade, esta demonstrada nesse video abaixo, como sempre e infelizmente em ingles:




Minhas laminas de plaina estao todas bem afiadas mas, por tudo o que foi dito, esta nos planos utilizar a mais facil de afiar para testar esse metodo.

E, claro, tao logo tenha feito os testes venho relatar. Uma bathora dessas, aqui nesse batcanal.


5 comentários:

  1. Muchos de nosotros preferimos el trabajo con herramientas de mano, quizá porque es más "artesanal" como lo dices tú. Tiene mucho mérito el hacer trabajos con estas herramientas y los resultados son realmente hermosos; sin embargo, no podemos negar que la tecnología es una gran amiga de este oficio. Este tipo de pruebas y experimentos nos ayduan a conservar, y utilizar mejor nuestros equipos de trabajo y hacerlos más eficientes.
    Al final el artesano es el que hace mejor uso de su talento con las mejores herramientas disponibles
    Gracias por la información y Felices Fiestas!

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    1. Grato pelo comentario, Sergio.

      Mesmo o Norm Abram que praticamente so utilizava ferramentas manuais se nao houvesse nada motorizado capaz de executar o servico, mesmo ele tinha de afiar suas ferramentas, ou seja, e' atividade inescapavel para qualquer um que se disponha a lidar com madeiras. Se uma tecnica/abordagem de afiacao oferece a possibilidade de obter bons resultados com menor perda de material e em menor tempo, nao vejo por que nao experimenta-la.

      Boas Festas!

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  2. Ótima postagem, muito interessante.
    Se me permite, segue abaixo algumas reflexões em consonância com as primeiras sentenças do teu texto.
    1) Por acaso a primeira etapa da minha afiação é uma sequência de curtas passadas na traseira da lâmina, porém confesso que não fazia com o entendimento de uma vantagem com relação a eficiência na obtenção do encontro dos dois planos, mas sim com o propósito de limpar a lâmina. Por diversas vezes, na verdade na maioria do casos, há um filete de acúmulo de "serragem resinada". Às vezes passo a unha e depois vou para as passadas na traseira, outras vou direto para as passadas, enfim, os meus objetivos: não me atrapalhar na identificação da rebarba e limpar de fato a traseira; Em tempo, a minha afiação é ligeira, ou seja, é capaz que parte da eficiência venha deste achado;
    2) Não sei o que é mais interessante: as fotografias ampliadas, o gráfico com as deformações e linhas referentes ao restabelecimento, ou, a conclusão. De todo o modo, apesar de concordar que faz todo o sentido, coloco uma questão no ar: Até que ponto o ângulo de incidência/ataque que se forma na afiação influencia no tempo em se desbastar? Creio, com base somente nas minhas observações, que quanto mais agudo o ângulo mais rápido é o desbaste, e neste sentido, o desbaste do chanfro seria mais rápido do que o da traseira. Veja, novamente, enfatizo: minhas observações, hehehe. Não afirmo aqui nada com relação a este ponto, somente compartilho uma questão que me vêm a mente. Se por ventura o que penso ocorre de fato, teremos uma equação, e a reposta não será tão trivial;
    3) O vídeo demonstra a remoção da rebarba com angulação "zero" entre a traseira e a pedra. Creio fortemente que aplicar tal etapa com o macete do David C. (inclinar ligeiramente a lâmina - macete da régua de bolso) pode ser mais convidativo ao usuário. Na verdade é o que eu faço. E de fato, se estamos com uma lâmina perfeitamente plana nas mãos, a rebarba sai rápido no jeito do vídeo, caso contrário, a vida real é um pouco diferente da do estúdio, hehe.

    Enfim, é o que me ocorre por ora. Como sempre, belos achados Paulo. Abração.
    Cosme

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    1. Repara que os experimentos relatados referem-se a plainas com lamina com bizel para baixo, ou seja, a 'face de ataque' e' a plana e a 'face de escape' o bizel. Obviamente, utilizando plainas com bizel para cima a coisa se inverte.

      Inobstante outras consideracoes que se possa advir dessas observacoes, a licao a que mais atentei foi o fato de se nao deixarmos o fio arredondar muito mas reafiarmos com maior frequencia, o desgaste necessario para refazer a geometria do gume, retornarmos a um raio zero, e' exponencialmente menor. Quantitativamente, olhando a ultima figura, com as linhas mostrando o desgaste necessario para recompor o fio apos um arredondamente produzido por 250 passadas, ve-se que em ambas as faces tal desgaste sera de menos de 10 micra — coisa de meia duzias de passadas em uma pedra G1000, uma barbadinha...

      De todo modo estou preparando algumas experimentacoes para realizar com minha 'medium shoulder plane' — com sua lamina de A2 estreita e reta como um formao e portanto facil de afiar. Nao tenho condicoes de efetuar testes objetivos, claro, por nao dispor da instrumentacao necessaria para tanto. Mas acredito que subjetivamente havera suficientes informacoes para talvez desenvolver um regime de afiacao o menos trabalhoso possivel — o que afinal e' sempre o meu objetivo, hehe.

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    2. Minhas observações como também a minha leitura do experimento apresentado é indiferente com relação a posição do chanfro, se para cima ou para baixo. Creio que o que importa neste caso é somente o encontro dos planos. A pouco me lembrei que a área é inversamente proporcional a força, de modo que o nosso corpo tem um limite real de aplicação de pressão quando fazemos a rebarba do chanfro. Havendo um filete para se trabalhar no chanfro, a nossa força será a mesma utilizada em um chanfro de vários milímetros, porém a área muito menor, o que ocasionaria uma pressão “bem maior”. De fato, para os meus olhos é, neste caso notório, que a pressão exercida sobre uma grosa é diretamente proporcional a quantidade de desbaste.

      Sim, é bem útil a conclusão com relação ao menor esforço na afiação quando se faz o processo em intervalos menores de tempo.

      Bacana, estarei aqui para apreciar os testes ;)

      Bom, vou voltar para o desempeno das pranchas, tenho que aproveitar o resto da manhã antes que a quentura infernal da tarde se aproxime.

      []s

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